Durante a conferência, uma das apresentações que mais me marcou foi, sem dúvida, a da bióloga/jurista Nicole Foss (também conhecida como Stoneleigh, editora no blog http://theautomaticearth.blogspot.com/). A apresentação, que teve por título: “Making Sense of the Financial Crisis in the Era of Peak Oil”, abordou o estado do sistema financeiro mundial e deixou-me profundamente abalado, assim como à metade dos participantes na conferência que a ela assistiram.
Shaun Chamberlin, autor do livro “The Transition Timeline” escreveu um artigo bastante descritivo desta apresentação e que, com o seu consentimento, traduzi para português. Aqui fica:
Cá estou, decidido a seguir o jogo de Inglaterra (Inglaterra-EUA) com a máxima atenção, mas ainda estou tão perturbado pela palestra desta tarde, por Stoneleigh, que sinto a necessidade de ordenar as ideias.
Incluindo a sessão de perguntas e respostas, a palestra durou cerca de 3 horas e cobriu uma área vasta, começando com uma boa revisão do problema do “pico das energias”, mas rapidamente passando a centrar-se na economia, que, na opinião da oradora, será o factor que mais dramaticamente determinará o futuro próximo. De notar que a palestra atraiu cerca de metade dos participantes na conferência, apesar dos vários eventos que decorriam em simultâneo.
A análise dela ajudou-me a transpor o fosso entre percepção e compreensão real. Não posso formar uma opinião genuína sobre um assunto sem antes ter escutado um argumento a favor de um ponto de vista e depois outro diametralmente oposto, e ter compreendido a origem da divergência de opiniões, de modo a formar a minha própria.
No caso do sistema financeiro, sempre me senti incapaz de chegar à origem da divergência entre os que prevêem um cataclismo para os próximos anos e os que argumentam que o sistema é bem mais resiliente do que os primeiros admitem.
O sentimento não desapareceu totalmente, mas hoje, na conferência, e ontem, durante a conversa que tivemos no bar até às 2 da manhã, a Nicole Foss (Stoneleigh) ajudou-me a transpor grandes fossos.
Ela acordou em enviar-me a apresentação que fez, mas, de qualquer modo, a sua opinião é de que estamos prestes a deslizar para a maior depressão económica que o Mundo jamais viu, causada pelo rebentamento da maior bolha financeira que o Mundo jamais viu. Isto, claro está, trará consequências de relevo para as pessoas, as famílias e as comunidades.
Consequentemente, o seu conselho N.º1 é “liberte-se das dívidas”, pois dívidas que hoje parecem facilmente suportáveis muito provavelmente deixarão de o ser, à medida que as taxas de juro sobem e o valor das propriedades se desmorona (talvez regressando aos valores que tinham por volta de 1970). No entretanto, as dívidas dos empréstimos à habitação permanecerão elevadas, deixando muita gente com um problema de património líquido negativo (negative equity) – em que o valor da dívida suplanta o valor patrimonial da habitação.
Ela também explicou o funcionamento do mercado de “derivados” de modo claro. Enquanto que muitos dos esquemas de fazer dinheiro se baseiam em cortar o bolo em fatias cada vez mais pequenas, o mercado de derivados baseia-se em outorgar direitos sobre fatias do bolo a cada vez mais pessoas. Quando o sistema estalar (o que não deixará de acontecer, uma vez que nem todos os titulares terão a possibilidade de provar o bolo), a maior parte do dinheiro que hoje circula no Mundo muito simplesmente deixará de existir, dando lugar a uma deflação de dimensões fenomenais. Passará a haver menos dinheiro em circulação relativamente aos bens existentes, de modo que o valor do dinheiro acabará mesmo por subir, enquanto os rendimentos descem. Como ela mencionou, o problema principal a ter em conta é a sustentabilidade orçamental (affordability) e não a inflação, deflação, salários em queda, ou outro qualquer problema. Que quantidade de bens úteis poderemos comprar com o dinheiro que temos?
Embora não tenha sido explícita, ela ordenou, em termos de risco, os tipos de activos em que poderemos investir. Começando com os mais desejáveis, a lista era, respectivamente:
Activos úteis: ferramentas e equipamento, terra, uma habitação em que desejemos mesmo viver, e que possam ajudar a gerar o que necessitaremos, etc…
Dinheiro: como a deflação deverá fazer com que o valor do dinheiro suba, ter dinheiro será uma coisa boa, mas o dinheiro depositado nos bancos muito provavelmente evaporar-se-á. Em resposta à inevitável pergunta sobre onde deveremos guardar o nosso dinheiro, a resposta que ela repetiu várias vezes foi “sejam criativos”.
Títulos de dívida pública: dado que manter uma quantia elevada de dinheiro vivo é pouco prático e propenso a levantar suspeições (para além de perigoso), ela sugere os Títulos de dívida pública como a maneira seguinte de aplicarmos o nosso capital.
Curiosamente, enquanto que ela acredita que possuir activos úteis e produtivos seja o passo mais importante (no fundo são a fonte da nossa capacidade de nos sustentarmos e à comunidade), também não deixou de mencionar que o preço de tais activos deverá baixar, à medida que a crise aperte.
Assim, sugeriu que uma possível linha de acção para aqueles que, no momento, não possam comprar activos úteis e produtivos (como terra) sem se endividarem, possa ser através da minimização da exposição aos efeitos da bancarrota, conservando o máximo de dinheiro possível para, mais tarde, poderem comprar mais barato. No entanto, aqueles que o possam fazer já não deverão perder tempo, pois mesmo que os seus activos venham a desvalorizar no futuro, isto terá pouco significado para quem tenciona mantê-los no longo prazo, ganhando o tempo necessário para poder aprender a usar estes activos produtivos antes que disso tenha necessidade.
Enquanto Nicole Foss dissertava, a assistência mantinha-se em silêncio e extremamente atenta, e podíamos observar as pessoas a ponderarem as implicações do que até então havia sido dito nos seus planos financeiros, das suas famílias e comunidades.
Uma pergunta pertinente veio de um presente que planeava iniciar um projecto comunitário de energias renováveis, para o qual teriam que recorrer a empréstimo bancário para adquirir os painéis fotovoltaicos, empréstimo esse que seria pago com base na tarifa bonificada garantida pelo Governo. A resposta de Stoneleigh foi que qualquer garantia do Governo a 20 ou 25 anos pouco mais valeria do que o papel em que é escrita, e que tais projectos deveriam ser levados a cabo sem o recurso a empréstimo bancário, caso contrário nem deveriam ser equacionados.
Acima de tudo, ela deu ênfase à urgência da situação em que nos encontramos, e que não deveremos esperar que a actual situação económica se venha a manter num período de dois anos.
Durante a conversa que tive com ela na Sexta-feira à noite questionei-a sobre o meu empréstimo de estudante, que é, actualmente, o mais benigno de todos os empréstimos imagináveis, com uma taxa de juro mais baixa do que a das contas à ordem livres de impostos. Ela disse que, mesmo assim, deveria tentar pagá-la o mais depressa possível, mesmo que para tal tivesse que empregar todo o dinheiro que tenho disponível, uma vez que o dinheiro no banco corre o risco de desaparecer, enquanto que as dívidas nunca desaparecerão. Na verdade, as nossas dívidas irão sendo vendidas sucessivamente, até descobrirmos que nos encontramos em dívida não ao banco onde originalmente fizemos o empréstimo, mas a alguma organização pouco recomendável.
Também conversámos sobre as melhores maneiras de enfrentar a difícil situação em que nos encontramos. Concordámos que os laços sociais são o mais valioso activo que poderemos ter, e que construir redes de confiança é o mais importante trabalho que poderemos fazer.
Ela mencionou o exemplo da Grande Depressão dos anos 30, em que, apesar da abundância de alimentos, combustíveis, recursos físicos e humanos, o sistema emperrou por causa da escassez de dinheiro que conectasse os vendedores aos compradores. Chegou-se ao ponto em que os agricultores deitavam fora leite de qualidade quando ao lado as pessoas passavam fome.
Isto fez-me lembrar de Mark Boyle, o “Homem sem Dinheiro” (the Moneyless Man), que acabei por conhecer há duas semanas atrás, no Uncivilisation Festival. A economia simples feita através de ofertas – ou Freeconomy – que ele pratica é exactamente o que era necessário naquela situação. Se os agricultores e os famintos pudessem ter confiado uns nos outros, um ser humano poderia ter alimentado outro sem que o dinheiro se metesse no meio, ou sem que qualquer tipo de transacção tivesse sido efectuada. E se o agricultor necessitasse de ajuda na sua quinta, talvez outros pudessem ajudar pelas mesmas razões. Talvez se ambas as necessidades coincidissem, talvez pudessem ter chegado a um acordo, mas onde não coincidissem, o simples desejo de ajudar o próximo, e a confiança de que outros ajudarão quando necessário, talvez tivesse posto aquela sociedade a funcionar novamente.
Mas como mencionado por Stoneleigh, a chave é construir a confiança com antecedência. Em tempos difíceis, os laços com aqueles em que confiamos tornam-se mais fortes, pois apoiamo-nos mais uns nos outros, mas do mesmo modo, a desconfiança para com aqueles fora do nosso círculo de relações poderá aumentar, pois poderemos suspeitar que eles só estão atrás do pouco que temos.
A transição sempre procurou alargar e fortalecer esses círculos, e ainda se afigura como o mais importante trabalho que poderemos fazer, mas Stoneleigh espera poder sugerir alguns ajustes aos nossos procedimentos, assim como reforçar o sentimento de urgência.
Alguns elementos ligados ao movimento de transição confidenciaram-me terem-se sentido algo abalados pela apresentação de Stoneleigh, mas, como ela teve a oportunidade de dizer, estamos no caminho certo. E o trabalho que fazemos é importante.
A apresentação de Stoneleigh encontra-se disponível aqui.
Ps. A Inglaterra empatou 1-1, mas, de qualquer modo, isso não me parece o mais importante que aprendi hoje!
Shaun Chamberlin é co-fundador do movimento Transtion Town Kingston, fundador do site http://www.darkoptimism.org/ e autor do livro The Transition Timeline.
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